Quando comecei a fazer teatro em minha igreja - já contei essa história algumas vezes - era um adolescente. Nunca havia feito qualquer curso, nem costumava ir ao teatro. Minha única referência era o grupo de teatro da Mocidade. Aproximei-me da líder e pedi para participar. Na primeira vez que entrei em cena, pareceu-me fácil demais atuar, parecia que eu tinha feito aquilo a vida toda. Será que eu havia nascido para isso? É uma possibilidade.
Mas, reavaliando a situação, vejo três possíveis razões para o ocorrido. A primeira se confirmou nos anos seguintes, quando, com apenas 16 anos, assumi a liderança daquele mesmo grupo que havia me iniciado. Fui fazer o profissionalizante em teatro e, mais tarde, a faculdade de Artes Cênicas. Talvez eu tivesse nascido mesmo para aquilo. A segunda razão, sem sombra de dúvida, era a minha arrogância de adolescente, que considerava possível fazer qualquer coisa que eu quisesse, sem medir as dificuldades e sem medir meus desejos com as reais condições apresentadas pelas circunstâncias. A terceira e definitiva é que o teatro que se fazia ali não era realmente difícil.
A gente, ao menos eu, nem sabia muito ao certo o que era teatro, não havia muitas referências em nosso meio. Era tudo muito novo.
Passados alguns anos, é difícil encontrar uma igreja que não tenha algum tipo de “ministério” artístico, de dança, de esquetes, de evangelismo com teatro ou coisa assim. Basta colocar “teatro evangélico” no Google para encontrar mais de dezessete mil entradas e no Orkut pode-se encontrar mais de mil comunidades sobre o tema. Veja só, tomando uma média do número de participantes dessas comunidades, e já considerando o fato de que um mesmo sujeito pode participar de mais de uma, ou de quase todas as comunidades ao mesmo tempo, dados esses “descontos”, teremos cerca de quinhentas mil pessoas interessadas no assunto “teatro evangélico” (não estamos nem considerando a dança...). Ou seja, poderíamos dizer que quase 2% do total de brasileiros que, segundo o IBGE, se professam protestantes têm algum tipo de interesse prático por teatro na igreja.
Mesmo considerando a imprecisão dos meus dados, fica claro que os números mudaram substancialmente. Não se trata de nenhuma novidade mais. Espanta, porém, saber que independente disso, não fazemos hoje um teatro melhor do que fazíamos há vinte anos. A impressão que temos, inclusive, é a de que teatro continua sendo uma coisa tão fácil – mas tão fácil - tão “natural”, que qualquer um pode fazer. Basta não estar “ocupado” com outro ministério naquele mesmo período ou horário. Fácil, inclusive, de ensinar, pois quase todo grupo teatral evangélico ministra oficinas a outros grupos ou igrejas (mesmo que nenhum integrante do grupo tenha qualquer formação específica).
Não são poucas as pessoas que começaram a trabalhar comigo na igreja e depois desistiram de fazer teatro. Se essas pessoas identificaram em outros ministérios a oportunidade de crescer e servir a Deus, não considero sua desistência uma perda. Foi, no máximo, uma descoberta. Mas uma coisa eu garanto: ninguém ficou por achar que fazer teatro fosse a coisa mais fácil, menos penosa, menos comprometida de todas. Ficaram somente os que entenderam que valia a pena pagar o preço. E foram muitos os que ficaram. Nunca chegaram a ser a maioria, mas nunca deixaram de ser muitos.
Parece que há um contingente bastante expressivo de “fazedores de teatro” em nossas igrejas, que não quer, contudo, qualquer tipo de comprometimento com “a trabalheira que dá” fazer teatro de um modo sério e maduro. É muito comum que nossos trabalhos sejam conduzidos de forma extremamente improvisada e que o compromisso dos integrantes de uma peça de Natal, por exemplo, com o "ministério da igreja", não vá além daquele trabalho episódico. Não há crescimento, porque não há continuidade.
O velho modelo – o do teatro fácil, que fazíamos em minha adolescência – se tornou a referência definitiva para as artes dramáticas no meio da igreja. Difundido por irmãos missionários, muito bem intencionados, mas muito pouco preparados e, ainda, nada interessados em pensar as linguagens cênicas como linguagens autônomas, o teatro virou uma coisa qualquer, um tipo de brincadeira por intermédio da qual “a gente” aproveita e fala de Jesus.
Qualquer grupo que ensaie um pouco mais e consiga fazer com que os atores falem um pouco mais alto (ou gritem – não sei a razão de se achar que atuar é sinônimo de gritar), com um punhado de figurinos mais ou menos bem confeccionados (o que nem quer dizer que sejam figurinos realmente bons) acaba por se tornar modelo e referência para os novos ministérios. Meu Deus, como pode ser que a regra - o mínimo requerido - venha a se instituir como fato de exceção?
Fico pensando o que falta em nosso meio para que o teatro que fazemos deixe de ser amador e insipiente. Não é má vontade de quem faz, não é certamente preguiça. Há muita gente disposta a dar duro por um bom trabalho. Faltam-nos, com certeza, os bons modelos.
Vem à minha memória agora o “Som do Céu”. Para quem não conhece, trata-se do melhor evento de música cristã do Brasil. É um encontro realizado pela MPC em Belo Horizonte, onde parece que o Céu se abre e aquela Música que a gente nunca consegue escutar nas rádios - porque não é suficientemente fácil de vender, ou porque não se vende de modo suficientemente fácil - se materializa em grupos, bandas, cantores, solistas, coros, etc. Um jovem músico que vá ao “Som do Céu” nunca mais poderá alegar ignorância, nunca mais vai poder dizer que não toca melhor por não saber que exista um melhor a ser tocado.
Precisávamos de um “Som do Céu” do teatro, talvez. Um lugar que não ofereça apenas oficinas de interpretação, cenografia, dança, etc., mas que faça “o pessoal” ver como é “teatro de verdade”. Isso não existe ainda.
Nossos encontros não estimulam o senso crítico, não “obrigam” o povo a pensar sobre o teatro como o simples dedilhar na viola de um João Alexandre nos obriga a pensar sobre a música, sobre a arte e sobre a vida inteira. Nossas oficinas de teatro e dança se assemelham a shows de variedades - para os quais acorre uma audiência ingênua, ansiosa por aprender um novo truque que possa ser repetido na sua própria igreja (dois ou três movimentos coreográficos novos, uma nova forma de fazer cicatriz com maquiagem, um exercício novo de relaxamento ou de impostação de voz). No lugar da reflexão, estimulamos a mimesis e depois queremos saber a razão porque fazemos um teatro tão ruim.
A igreja precisa de boas referências. Alguém se habilita?
Guido Conrado é mestre em Filosofia da Arte e Estética pela PUC-Rio, Coordenador do Bacharelado em Artes, com Habilitação em Figurino e Indumentária do Senai-Cetiqt, professor de Estética e História da Arte na mesma Instituição e autor da obra “Cinco Pães e Dois Peixes – Dons e Talentos No Ministério Teatral”. Trabalha há mais de vinte anos com teatro em igrejas e é membro da Catedral Presbiteriana do Rio de Janeiro